amores expresos

sábado, 15 de setembro de 2007

A PRAGA DE K

Martina é professora de inglês e literatura inglesa na Universidade de Praga. Gentilmente, quando soube, através de uma amiga comum, Lada, de minha presença e motivos para estar em Praga, dispôs-se a me acompanhar pela Praga de Kafka. De cara, demos azar, o cemitério onde ele está enterrado (que muitos pensam ser no velhíssimo e lindo cemitério judeu, e não é), estava fechado para visitas. Mas ser barrado num cemitério pode ser de bom augúrio.

Tornamos a pegar o metrô e fomos parar no Kavarna Arcos, café freqüentado por Kafka, Max Brod e às vezes até Milena. O grupo, que abrigava outros intelectuais e artistas, costumava referir-se a si mesmo como "Os Arconautas". Diz-me Martina, que até 1989, quando ruiu o Império Soviético, nenhuma menção a K era feita no Arcos. Só depois, mas não logo, os proprietários descobriram que tinham um bom negócio nas mãos. O Café, sua construção e visual já não tinham nada a ver com o antigo, este freqüentado por artistas, intelectuais, bêbados e vagabundos, virou um negocio clean, mas com um retrato de Kafka na vitrine. Lá dentro uns livros do autor para vender. Acabei comprando um, mas de fotografias, que mostra a Praga de Kafka como era no tempo dele.

De todo modo, senti certo frisson de estar tomando meu café ali no boteco de Kafka, e conversando com Martina sobre K, seus amigos e sobretudo sua relação com Milena Jesenská, mulher de cultura e forte personalidade, ativista política, que acabou morrendo num campo de concentração nazista. Como venho lendo sobre as mulheres de K, sua complicadíssima relação com elas, o assunto para mim é totalmente familiar e o papo engrena fácil. Já quando se trata dos dramas históricos dos tchecos, imprensados por alemães, Hitler, posteriormente Stalin, é difícil não se comover. Ao mesmo tempo, é legal viver o contraste com a bela e alegre juventude de todos os países que flana pela cidade hoje em dia. A indescritivelmente linda Charlus Most, nas minhas vizinhanças, é também o paraíso dos músicos de rua, muito bons, diga-se de passagem, com jazzistas, cantores, violinistas, multiinstrumentistas e suas incríveis máquinas sonoras, e por aí vai. Quantas vezes já não atravessei a ponte, neste mês, e nunca cansei. Pois se um rio nunca é o mesmo rio, como se diz, essa ponte nunca é a mesma ponte.

Mas voltando a K, chegamos a sua casa, perto do que antes fora o gueto, mas totalmente reformada e que abriga, naturalmente, uma exposição, com fotos de família, edições originais, etc. E vou cometer uma heresia: prefiro o novo Museu Franz Kafka, perto do meu hotel, que assume logo uma contemporaneidade e usa a tecnologia para criar um clima que um adjetivo não definiria, mas os leitores de Kafka,familiares com seu senso de humor (negro), sua genialidade para criar um mundo absolutamente novo, mas no qual reconhecemos o interior do nosso - esses leitores perceberiam logo uma forte relação. Bem, não estou dizendo muito, mas assistir a um audiovisual chamado O processo, com impressões de uma Praga fantasmagórica, que às vezes se desfaz, já vale a ida ao Museu.

Com tantas transformações por que passou o nosso mundo, não é de admirar que Kafka, segundo as palavras de Martina, transformou-se em marketing e objetos de consumo altamente vendáveis em Praga. Franz Kafka, inevitavelmente, chegou às camisetas, como toda celebridade presente ou passada. O que pensaria disso o escritor, com todas as suas culpas e complexos? Curioso é que quando falei em Andy Warhol a Lada e Martina, ambas disseram não gostar dele. Mas é justamente desse mundo das camisetas e celebridades que Warhol foi o arauto genial e que começa a passar por um processo de revalorização. E sua presença aqui, no Museu Kampa, para visitantes como eu, é mais do que bem-vinda.

Mas prefiro terminar a descrição de meu passeio com Martina numa avenida nova, asfaltada, o que não é normal aqui, no centro da cidade. Lá no fundo vê-se um lindo, colorido e gigantesco metrônomo. Foi colocado no lugar de uma estátua de Stalin, simbolizando um novo tempo. Logo depois, Martina pegaria sua bicicleta e iria para casa, a quinze quilômetros da cidade. Como seu marido é húngaro, pude conversar com ela sobre Puskas, Kocsis, Czibor, Hideguti, do espetacular time húngaro de 1953/4, cujas atuações são transmitidas de geração à geração. Aliás, todos eles foram transformados em personagens, "a cle," no romance Budapeste de Chico Buarque. Sergio Sant'anna. Praga, 15 de setembro de 2007.

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