VALSA DO ADEUS
Em Praga, no estatuário, o sofrimento cristão está em toda parte. Mas fiquei feliz que Tadeu pudesse registrar o Cristo que tenho logo diante de minha janela, no quarto de hotel, diante da Charlus Most. Sua grande diferença, que logo me chamou a atenção, é que Ele, cercado por dois homens, médicos, acho, está com muito boa aparência, de rosto e de corpo. E está com um dos braços agarrando a cruz, com uma certa displicência - e me desculpem os cristãos fervorosos - que me lembrou um pouco um esportista. Da minha janela no Hotel Três
Avestruzes, posso ouvir também, enlevado, o gorjeio de aves que não gorjeiam como as daí.
Senti-me realizado, também, que Tadeu pudesse filmar a musa eleita para minha história: uma escultura de madeira, em frente ao Caffé de Lei. Trata-se de uma jovem bem moderna, com seios que aparecem sob a blusa, uma das pernonas de fora, o sexo velado, mas ostensivo, enfim, uma jovem que alegra o turista já meio cansado de terrores e crucificações. Se pudesse, eu a levaria comigo para casa, sentada ao meu lado no avião.
Falando em turistas, o curioso é que esses não fazem nunca o roteiro kafkiano, graças a Deus, se não teríamos japoneses fotografando todos os retratos, manuscritos, instalações, no Novo Museu; guias falando em diversas línguas, uma babel terrível que nem Franz seria capaz de prever. Talvez se possa inferir daí algum princípio de Literatura Comparada: Kafka não é para japoneses. Vou tentar conferir esse princípio, na primeira oportunidade, com o grande poeta nipônico Gozo Yoshimasu, meu colega no International Drinking Program, na Universidade de Iowa, EUA, em 1970/71.
Levei Tadeu ainda para ver o pintor eslovaco Vincent Hloznik que me fez, ou me destruiu de vez, a cabeça, com surubas desconcertantes, humanas e animalescas. Enfim, indescritíveis, mas suponho que vocês poderão ver os quadros no documentário do Amores Expressos, como também poderão ver a bela Alice, de Carrol, no cartaz do belo teatro de sombras, a que assisti, encantado. E devo explicar que todas essas coisas fizeram parte de minhas pesquisas de campo.
Enfim, no documentário haverá também uma outra Praga, em que habitam uns poucos marinheiros negros, que convidam os visitantes para passeios de barco no rio Vltava. Conversa vai, conversa vem, descobrimos que são da Costa do Marfim, e marinheiros porra nenhuma. Estão assim trajados apenas como chamariz, e como nesta cidade quase não há negros, chamam a atenção à distancia. Mas um deles logo estava querendo cobrar uma grana para ser filmado. E seu argumento definitivo - para darmos no pé - foi: "Mas o Ronaldinho não cobra?"
O que me resta nesses últimos dias? Talvez volte ao pub Vodu, para tomar absinto, relembrando os tempos em que eu, Sartre, Simone, Boris Vian... E comer uma avestruz como ultima refeição. Sergio Sant'Anna - Praga, 30 de setembro de 2007.